Uma metafísica secular (2)



A poesia não é, para Stevens, a realidade, sequer a imaginação, ou esse “objecto” a que chamamos de poema. A poesia é uma meta-processualidade na qual se articulam realidade e imaginação. A poesia é um princípio holístico onde realidade e imaginação ganham sentido, mesmo que esse sentido seja, também ele, provisório. Dir-se-ia que há aqui uma cosmologia cuja exegese é improvável, já que Stevens se furta sempre, através de uma arte de prestidigitação sem paralelo na literatura de expressão anglo-saxónica do século xx, a quaisquer exercícios de interpretação final. Ele recusa-se a definir poesia, sem deixar, porém, de se confrontar com o problema. Por exemplo, explicita-o em The Necessary Angel de um modo que se me afigura, hoje, incontornável, dada a lucidez e humildade com que o faz. Assumindo a impossibilidade de definição, ele fala-nos aí, seguindo Shelley, de uma “faculdade” ou, adiante, recusando a ideia de se estar perante uma substância (uma espécie de essência que aguarda a intervenção iluminada do poeta para ser identificada), diz-nos tratar-se de “um processo da personalidade do poeta” que, em todo o caso, não pode ser atribuído ao poeta, à sua subjectividade, senão de forma indirecta. Mas sem a personalidade do poeta (sem esta relação indirecta com a sua personalidade), avisa-nos Stevens, não pode haver poesia, o que vem comprometer qualquer definição. Como virá ele a escrever em “Adagia”, as “definições são relativas”, e a “noção de absolutos é relativa”. Como virá ele a escrever no mesmo lugar, “o poeta é o sacerdote do invisível”.
O que interessa fundamentalmente a Stevens é a poesia e não o poema, ousaria afirmar. Ou melhor o que interessa a Stevens é esse momento, essa dobra no tempo, em que o poema é o vestígio de um deslocamento no interior da meta-processualidade a que ele chama de poesia, momento em que a imaginação parece sobrepor-se à realidade. A poesia é o princípio cosmológico (mas também o princípio fenomenológico já que estamos perante um aspecto da experiência humana) sem qual o poema não seria possível. E o poema ocorre quando a realidade se suspende, sob efeito de uma ausência que ele explicita, dando lugar à imaginação e aos seus sortilégios, ainda que essa emergência da imaginação seja apenas o produto de uma contingente assimetria entre realidade e imaginação que ocorre no tecido da experiência. 



Luís Quintais

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