PORTUGAL EM PÂNICO de Milton Hatoum

'Portugal em pânico' è um texto do escritor brasileiro de origem libanesa, Milton Hatoum. Foi publicado em Novembro de 2012 no jornal 'Estado de São Paulo' e posteriormente no livro de crónicas 'Um solitário à espreita', Editora Schwarcz, São Paulo, 2013.

Milton Hatoum estará entre nós no Sábado, dia 21. Às 15 horas participa num encontro com o poeta sírio Adonis, no Programa PRÓXIMO FUTURO da Fundação Calouste Gulbenkian. - no Auditório 3 da Fundação - Entrada Livre -


PORTUGAL EM PÂNICO

O MAU TEMPO EM ROMA me fez perder a conexão do voo em Lisboa, mas me permitiu passar uma tarde e uma noite nessa cidade.
Peguei o metrô e desci na estação de Baixa-Chiado, onde vi outros turistas chineses. Digo outros porque vi chineses às pencas em Veneza, onde cantavam nas ruas estreitas e também nas gôndolas pretas e douradas que navegam nos canais que serpenteiam a cidade. Chineses de todas as idades, alegres e com grana, cantando em voz alta uma canção que só eles entendiam. Esse canto de júbilo ecoava nas ilhas do Adriático e parecia dizer que o século XXI será predominantemente chinês.
Pensei isso enquanto observava numa livraria veneziana um mapa com a rota das viagens de Marco Polo, cuja aventura só pode ser igualada à do seu quase contemporâneo Ibn Battuta, o marroquino que percorreu mais de 120 mil quilômetros por regiões e cidades de África, Ásia e Oriente Médio.
E eis que, em plena praça Camões, depois de olhar para a fachada da Manteigaria União, vi um bonde cheio de chineses exultantes, cantando outras canções, ou quem sabe as mesmas que eu ouvira em Veneza. Acenavam para mim, mas logo percebi que o aceno era dirigido a outros chineses sorridentes, sentados ao lado do quiosque da praça.
O bom humor desses turistas contrastava com o desânimo dos portugueses. Numa conversa com jovens estudantes lisboetas, um deles me disse que a crise econômica não é apenas uma crise, e sim a falência de todo um sistema que havia degenerado numa espécie de cassino planetário, onde investidores invisíveis movimentam bilhões de dólares e arrasam a economia de vários países.
Uma morena tatuada com flores e corações nos braços disse que 15% dos jovens europeus não encontram trabalho:
«Mais de oitenta mil jovens portugueses deixam anualmente o país. Abandonam os estudos e a família e vão viver na Alemanha, Inglaterra, França e também no Brasil…»
«Pois olha: estamos à deriva», disse o mais velho do grupo. «Vivemos entre o mar e o humor da sra. Merkel.»
«Entre o oceano e o abismo», corrigiu a jovem tatuada, mostrando uma manchete do jornal Público: «Governo propõe corte de 10% nos subsídios de desemprego mais baixos».
Abro o jornal e leio uma frase na faixa de protesto em uma manifestação recente: «Mãe, estou no desemprego».
«Resta-nos a mãe», sorriu a moça, olhando as enormes letras pretas escritas na faixa. «Resta-nos a dignidade de estarmos vivos, de sermos portugueses.»
Penso na gastança e na ganância dos bilionários e dos predadores de Wall Street, nos fabricantes de armas e nos senhores das guerras, na miséria infinita da África, América Latina e Ásia, na bolha consumista brasileira que pode espocar a qualquer momento. Penso na nossa euforia, que pode ser efêmera. E quase ao mesmo tempo penso nos países nórdicos, onde o capitalismo tende ao socialismo, onde a desigualdade social é mínima e o desemprego é quase um pecado mortal ou uma vergonha do Estado.
Agora todos estão calados, e quando a moça abre os braços para acolher um amigo, as flores e o coração crescem na pele morena. Dou adeus aos jovens da praça Camões, pego o bonde 28 e desço no Largo das Portas do Sol; contemplo o belo casario de Alfama, e essa paisagem me remete ao pouco que restou do centro histórico do Rio, de Salvador e Belém. Na outra margem do Tejo, as primeiras luzes de Almada. No meio do rio, um cargueiro da cor de ferrugem esfuma-se no anoitecer. Oiço uma voz feminina, sotaque mineiro, e pergunto de onde ela é.
«De Araçuaí, Vale do Jequitinhonha», ela disse, com voz mansa. «De Araçuaí Riobaldo trouxe uma pedra de topázio para dar a Diadorim.»
Estudou literatura em Belo Horizonte e há dois anos mora e trabalha em Portugal. Disse que gosta muito de Lisboa, mas sente saudade do Brasil.
«Você quer voltar para lá?»
«Quero e não quero», respondeu. A vida aqui está difícil, muitos brasileiros estão voltando, mas eu me apaixonei por um português e você sabe… Essas coisas do coração.»
No centro de um pequeno Largo de Alfama, uma palmeira solitária.

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