A menina morta, de Cornélio Penna

«— Não, Dona Frau, vancê não pode costurar mais êsse babado no vestido, neste vestido — disse a velha negra, que acentuou bem as duas últimas palavras enquanto erguia as mãos, no gesto das Verônicas das procissões, agarradas ao corpinho de brocado branco entretecido de prata, em desenhos de flôres de sonho, de contornos vagos.
Estavam na sala de costura da fazenda de altas paredes caiadas onde se encostavam dois armários de jacarandá escuro, bojudos, e cujas portas entre colunas tinham sido escancaradas. Via-se bem o seu interior onde se amontoavam peças de linho, de sêda, de merinó e de cassa da Índia pousadas em prateleiras sucessivas até bem no alto e, lá em cima, as plumas e flôres artificiais deixavam ver suas côres delicadas. Sôbre a cadeira estavam já prontas a pequena camisa decotada, as meias de sêda branca e os borzeguins feitos a mão, destinados à menina morta.
A senhora de meia idade a quem chamavam “dona frau” devia ser alemã pela côr dos olhos e da pele, mas vestia-se tal como as fazendeiras brasileiras o faziam e trazia enfiada nos cabelos certa agulha muito grossa e longa. Considerou com grave atenção a roupa posta diante dela pela escrava e reconheceu tristemente ter esquecido de não se tratar de vestuário de gala destinado a figurar nas reuniões da Côrte longínqua, apenas entrevista quando de sua vinda da Europa para “as Américas”. Aquêle pesado estofo de pregas duras não iria revestir o corpinho quente e agitado da criança que recebera com tanto carinho e crescera tão diferente da imperiosa e morena selvagem imaginada por ela…
Era simples mortalha que confecionava ajudada pela mucama de dentro cujo gôsto e bom-senso ela confessava em seu íntimo sem nunca deixar transparecer, pois era perpétuo absurdo aquela criatura disforme, côr de chocolate, com enormes olhos coruscantes, ora acesos ora apagados, iguais aos das aves domésticas, ter critério e tato para saber o que ficava melhor e mais elegante nos trajes confecionados por elas, para pessoas tão diferentes. Teve de admitir não ser possível ajuntar mais o folho por ela pretendido à saia redonda encomendada pela Senhora. Reviu com nitidez o rosto da dona da fazenda, impassível, quase sem mover os lábios, ao lhe dizer que fizesse o vestido com manguinhas de quitute e a saia curta.»

"A menina morta", de Cornélio Penna
(Colecção Curso Breve de Literatura Brasileira)
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«(...) a excelente qualidade dum romance como "A menina morta" de Cornélio Penna assenta na espessa corrente de mal-estar que antes de tudo produz no seu leitor, qualquer seja a solicitação — estética, cultural, antropológica, crítica — que o mova na densa rede duma escrita exigente, que instiga um corpo a corpo extremado com a sua inteligência.»
Posfácio de Roberto Vecchi, "Autópsia da Casa-Grande"

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