Nove noites, de Bernardo Carvalho

«Passei a primeira noite praticamente acordado. O sofrimento do meu pai não me deixava dormir. Ele estertorava, gemia de vez em quando, queria dizer alguma coisa. Eu tentava acalmá-lo em vão. Quando chegamos, as cortinas do leito ao lado estavam fechadas. No meio da noite, o outro paciente também começou a resmungar. Volta e meia uma enfermeira vinha aplicar-lhe alguma injeção. Só de manhã é que o vi pela primeira vez. Tinha os cabelos totalmente brancos, os olhos azuis aguados e era muito magro. Lá pelas dez da manhã, um rapaz entrou no quarto, me deu bom-dia, cumprimentou o velho, puxou uma cadeira, sentou-se ao pé do leito, tirou um livro de uma sacola e começou a ler. Minha irmã ainda não tinha chegado. O rapaz lia em inglês. Para meu espanto, logo reconheci as primeiras linhas de "O companheiro secreto", de Joseph Conrad, um dos meus contos preferidos de adolescência. O rapaz não tinha nenhum sotaque. Nem em português nem em inglês. Era bilíngue. Falava como um americano do Meio-Oeste. "Ainda pude vislumbrar um lampejo do meu chapéu branco deixado para trás, marcando o lugar onde o companheiro secreto da minha cabine e dos meus pensamentos, como se fosse o meu segundo eu, havia imergido na água para cumprir a sua pena: um homem livre, um nadador orgulhoso dando braçadas rumo a um novo destino." Quando terminou o conto, levantou-se, disse ao velho - que, como eu, o havia escutado impassível por mais de duas horas - que voltava no dia seguinte, despediu-se de mim com um gesto de cabeça e foi embora. Fiquei perplexo. Quando a enfermeira voltou, perguntei-lhe quem era o companheiro de quarto do meu pai e ela respondeu que não fazia idéia, era nova naquela ala. A enfermeira da noite certamente poderia me dizer. Naquela noite, eu procurei a chefe de enfermagem do andar. E ela me contou o que sabia. Meu pai dividia o quarto com um americano de oitenta anos, que morava no Brasil havia muito tempo. "Ele não tem ninguém aqui, nenhum parente, nenhum amigo." Estavam tentando encontrar o filho nos Estados Unidos antes que ele morresse. O velho tinha sido mandado de um asilo para o hospital, quando começou a piorar. Estava com câncer. Seus dias estavam contados. Perguntei quem era o rapaz que eu tinha visto naquela manhã, se era da família. Tratava-se de um acompanhante, contratado pela instituição de caridade que mantinha o asilo de onde viera o velho, uma sociedade criada por missionários americanos. "Parece que o rapaz o acompanha há anos", me disse a enfermeira-chefe no corredor.
No dia seguinte, lá estava ele, pontualmente, às dez. Abriu o mesmo livro e dessa vez começou por ler o prefácio de Lord Jim: "Por uma manhã de sol, na banal decoração de uma praia do Oriente, eu o vi passar, impressionante, na nuvem do seu mistério, perfeitamente silencioso. E é bem assim que ele devia ser. Competia a mim, com toda a simpatia de que era capaz, procurar as palavras adequadas a sua atitude. Ele era um dos nossos." Durante duas horas, leu para o velho impassível. Não dava para saber se o doente o entendia ou não. Como no dia anterior, no final de um capítulo, o rapaz se levantou, despediu-se do velho e de mim e foi embora. Eu saí atrás dele. Alcancei-o antes que entrasse no elevador. Perguntei o quanto o velho entendia daquelas sessões de leitura em voz alta todas as manhãs - eu queria saber o quanto o meu pai podia entender do que eu lhe dizia. "Leio sempre as mesmas coisas. Os textos de que ele mais gostava. É o mínimo que posso fazer", o rapaz respondeu, e foi embora.»

"Nove noites", de Bernardo Carvalho
(Colecção Sabiá)
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Bernardo Carvalho (n. 1960, Rio de Janeiro) é jornalista e autor de, entre outros, "Aberração" (contos), "Teatro" (romance), "Nove noites" (romance, prémios PT e Machado de Assis, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), "Mongólia" (romance, prémio Jabuti e APCA), "O sol se põe em São Paulo" (romance) e "Filho da mãe" (romance) - todos estes editados pela Cotovia. É considerado o mais original escritor brasileiro dos anos 90. Traduzida já para mais de dez idiomas, a sua escrita depurada, urbana e cerebral, em que nada é o que aparenta ser, agarra o leitor como um vício.
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«"Nove noites", de Bernardo Carvalho, é um livro traiçoeiro. O leitor agarra, não larga e continua com ele na cabeça depois da última página.»

Jorge Coli, Folha de S. Paulo

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