O Lugar Supraceleste, de Frederico Lourenço

O Cravo Bem Temperado... em piano

«A Bíblia musical da vida e da espiritualidade humanas chama-se em português "O Cravo Bem Temperado" (CBT), mas na verdade Bach não compôs a obra especificamente para cravo. "Klavier", na época de Bach, tinha como referente qualquer instrumento de tecla (cravo, clavicórdio, órgão, o adventício forte-piano) e se há verdade irrefutável no campo da estética musical é que o CBT é uma obra que fica igualmente bem tocada em qualquer desses instrumentos. E fica magnificamente bem tocada num piano moderno, com todos os recursos de que dispõe o mais esplêndido de todos os instrumentos.
O piano traz várias vantagens à interpretação desta obra, constituída por 48 prelúdios e fugas que abarcam todas as tonalidades. Os 48 prelúdios são todos completamente diferentes uns dos outros e o piano consegue encontrar uma sonoridade própria para cada um destes 48 retratos de outros tantos estados da alma humana. Na sua maior parte, os prelúdios do CBT são peças que nas edições modernas não ultrapassam as duas páginas e têm, por isso, a força colossal que advém da sua síntese. Desde a tristeza mais profunda ao êxtase mais enlevado, os prelúdios do CBT percorrem toda a gama do sentir. Funcionam como espelhos dos nossos sentimentos, ao mesmo tempo que nos ensinam a lidar com eles.
(...)
Hoje em dia toca -se Bach no piano de uma maneira muito diferente comparativamente à realidade de há 30 anos. Pianistas como András Schiff e outros dão-nos hoje interpretações que, na sua estética, são bastante informadas do ponto de vista histórico. Antigamente, os pianistas conheciam apenas duas regras de articulação válidas para a música de Bach: ligar as semicolcheias e picar as colcheias. Onde isso já vai. No entanto, pessoalmente não morro de amores por um Bach historicamente informado no piano. Para se executar o discurso musical seguindo à risca a “pontuação” explícita e implícita na partitura, o piano está em desvantagem, porque não consegue todos os subtis sinais de pontuação que a própria mecânica do cravo permite. O piano domina à perfeição o ponto final e a mudança de parágrafo; a articulação possibilitada pela mecânica do cravo consegue juntar a estas pontuações a vírgula, o ponto-e-vírgula, os dois pontos e o travessão. Como lhe falta toda a paleta de dinâmicas que o piano permite, tem de ser com base nesta subtilíssima arte da articulação que o cravo consegue os seus efeitos. Aqui, não há András Schiff que possa competir com um Gustav Leonhardt.
Assim, ouvir Bach em piano será sempre um prazer maior quanto mais pontapés o pianista der na historicidade da interpretação. Por isso, a perfeição de "O Cravo Bem Temperado" em piano chamar-se-á sempre Sviatoslav Richter.»


O Lugar Supraceleste, de Frederico Lourenço

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