Orientalismo, de Edward W. Said

«Comecei por assumir que o Oriente não é um facto inerte da natureza. Não está "ali", do mesmo modo que o Ocidente também não está exactamente "ali". Temos de levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua própria história, de que o que eles podem conhecer é aquilo que fizeram, e devemos aplicá-la também à geografia: esses lugares, regiões e sectores geográficos que constituem o Oriente e o Ocidente, enquanto entidades geográficas e culturais — para já não dizer históricas — são criações do homem. Por conseguinte, tanto como o Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, de imagens, e um vocabulário que lhe deram uma realidade e uma presença "no" e "para" o Ocidente. As duas entidades geográficas, pois, apoiam-se, e até certo ponto reflectem-se uma na outra.
Uma vez dito isto, há que expor uma série de ressalvas pertinentes. Em primeiro lugar, seria errado concluir que o Oriente foi "essencialmente" uma ideia, ou uma criação sem uma realidade correspondente. Quando Disraeli disse no seu romance "Tancred" que o Oriente é uma carreira, queria dizer que para os brilhantes jovens ocidentais estudar o Oriente poderia ser uma paixão absorvente; não se deveria interpretar o que disse como que o Oriente era "apenas" uma carreira para os ocidentais.
(...)
Uma segunda ressalva refere-se às ideias, às culturas e às histórias que não se podem entender nem estudar seriamente sem se estudar ao mesmo tempo a sua força ou, para ser mais preciso, as suas configurações de poder. Acreditar que o Oriente foi criado — ou, como costumo dizer, foi “orientalizado” —, e acreditar que tais coisas ocorrem simplesmente como uma necessidade da imaginação, é faltar à verdade. A relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de domínio, com diferentes graus, de uma complexa hegemonia, como o mostra, e bem, o clássico de K. M. Panikkar, "Asia and Western Dominance". O Oriente foi orientalizado não apenas porque se descobriu ser “oriental”, segundo os estereótipos do europeu médio do século XIX, mas também porque "podia" — isto é, poderia ser obrigado a — "tornar-se" oriental. Pouco se pode objectar, por exemplo, a que o encontro de Flaubert com uma cortesã egípcia tenha originado um paradigma da mulher oriental amplamente influente; ela nunca falava de si própria, nunca representava as suas emoções, presença ou história. "Ele" falava por ela e representava-a. Ele era estrangeiro, relativamente rico, homem, e estes eram factores históricos de dominação que lhe permitiam não apenas possuir Kuchuk Hanem fisicamente, mas falar por ela e dizer aos seus leitores de que forma ela era “tipicamente oriental”.»

Orientalismo, Edward W. Said
(trad. Pedro Serra)

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