Comer com os Olhos #1


1. Eu sei.


Eu sei que provavelmente deveria começar estas linhas explicando o título da minha crónica. Crónica que a Fernanda Mira Barros me convidou para escrever, há uns tempos atrás, via Messenger, tenho quase a certeza – sinal dos tempos (é disto que vou falar) e que, combinámos, seria quinzenal. Que o título seria, inicialmente (a Fernanda não sabe disto) Esta noite come-se com os olhos esta noite por causa de uma brincadeira com um título de uma música de um mockumentary que aprecio bastante (Spinal Tap), mas depois disseram-me que não tinha assim tanta graça e que ninguém iria perceber e que seria bastante estúpido usar.

Só que ontem e no dia anterior, à mesma hora, passei no Maria Matos para escutar duas pessoas diferentes a falar sobre – eu poderia dizer ‘questões indígenas’, mas acho que ia falhar o alvo. Uma delas, Viveiros de Castro, já tinha ouvido outras vezes, quase sempre em contexto académico, já lhe conhecia o rizoma e a vaidade. O outro foi début. O outro era o Ailton Krenak, que apesar da fama, me apanhou desprevenida. E afinal era mais sobre isto que me apetecia falar.

Krenak abordou a noção de pessoa, e de mundo, ‘enquanto território partilhado’.  Dos espíritos dos nossos antepassados que animam aquilo que estamos habituados a ver como recursos, e da instituição do sonho. Mas sobretudo falou no seu tempo. Quer dizer, falou noutro tempo. No tempo da pausa. Ele falava e parava e falava de novo e parava de novo e pensava no que dizia e dava-nos tempo para pensar no que dizia também. Aquilo era soothing e eu fiquei louca, porque o meu tempo é o tempo do capitalismo, da rapidez, do multitasking. Gostei muito. Gostei muito daquele abrandamento (“abrandamento” para mim, para ele seria só “ritmo”). E fiquei a pensar sobre alguns significados de  tudo aquilo.


2. A questão do intervalo - a pausa enquanto intervalo - sempre me interessou muito. Há pouco tempo, comecei a gravar (acho que foi uma sessão só ainda, mas o plano é que sejam muitas) o projecto colaborativo entre o Joaquim Albergaria, baterista, e a Gwen Van der Velden, artista plástica; são ambos artistas muito talentosos que, por acaso (or is it?...) também se amam. Meet me in the middle fez-me pensar nessa questão do intervalo, no meio, no espaço entre. Aí eu pensei num texto da Judith Butler, em que ela fala sobre o espaço e a política, ou a política do espaço, e num trecho em que coloca muito claramente que “o [meu] corpo não age sozinho quando age politicamente. Na verdade, a acção emerge do ‘entre.’”  Neste texto, Butler fala da importância do aparecimento do corpo para que a política possa acontecer. A mim interessa-me muito esta a questão da visibilidade, da importância do espaço do reconhecimento. Ver estas conferências (Viveiros de Castro e Ailton Krenak) no espaço de um teatro, no espaço que é por excelência um lugar de visibilidade (e o seu contrário, também) fez-me pensar na importância de ser visto: ser visto é existir. Tornar o corpo visível, ocupar o espaço (público) é um acto político, e é sobretudo político quanto mais representa um intervalo do tempo capitalista na medida em que “[n]o bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil (...). Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente” (Foucault). Parar para ouvir pode ser um acto político porque interrompe o tempo da produção.


3. O intervalo enquanto interrupção do tempo capitalista, e a pausa no sentido real de “estás a mandar uma granda pausa”, significa rejeitar o carácter imediato das trocas, então. No mercado, “cada troca é completa. (...) cada relação é pontual e não compromete o futuro (...) e portanto não nos insere num sistema de obrigações” (J. Godbout). Não existindo dívida, não existe obrigação de retribuir. Como aponta Suely Rolnik, essa seria a principal diferença “entre retribuir e pagar uma dívida: retribuir uma doação não tem prazo nem conteúdo previamente definidos”. Para o capitalismo “ser um indivíduo equivale a não dever nada a ninguém” (Berthoud).

Ser um indivíduo pode ter que ver, então, com esta ideia da não obrigação de retribuição. Com a ideia da não geração/manutenção de laços sociais. Ser indivíduo é ser independente e ser independente é não ter dividas, que também é dizer não ter laços. A dádiva - por exemplo, por oposição à troca – a dádiva pressupõe uma reciprocidade, uma contra-dádiva, e isso implica um tempo que não é o imediato, um tempo de (mais ou menos) longa duração, como as cartas, que dependem da resposta para ganhar corpo (para concretizarem a sua natureza, é o que quero dizer). Naquelas pausas, naquele tempo que demorava a pensar e que tão generosamente nos concedia para pensar, Ailton Krenak falou também de uma noção de pessoa que implica todos estes laços, e não é nem com as pessoas que estão aqui, é com as que foram e que ainda virão, e que comunicam (mesmo, não é parábola) através de sonhos. Porque criar laços é um acto político contra o capital.

Esta não era a crónica que tinha pensado escrever. Não era assim que pensava abrir a minha colaboração. Mas depois de ontem, não poderia ser de outra forma.
Se tudo correr bem, agora terão menos um motivo para odiar as segundas-feiras. E mais um (muitos) para odiar o capitalismo.



Patricia Azevedo da Silva nasceu em 1977 naquele que é, sem dúvida, o ano mais punk do século XX (serpente de fogo). Trabalha sobre a dádiva e a ideia de reciprocidade a partir da óptica do amor (a sua tese de doutoramento, “Pão é Amor Entre Estranhos”, ainda por terminar, aborda a ideia do alimento enquanto linguagem&afecto, a partir de trabalho de campo realizado em São Paulo). Na sua tese de mestrado, “Para lá do prejuízo”, trabalhou os temas de género, colonialismo e performance a partir da análise de experiências de mulheres brasileiras a viver em Lisboa.
Trabalhou com quase todas as produtoras de cinema em Lisboa (nos anos 2000) e foi aí que descobriu a importância da repetição (no sentido de repetir obras). Também foi ganhando outras relações com outras ideias de teatro e, actualmente, tenta fazer o mesmo com a dança (e, ainda remotamente, com as artes plásticas).
Cresceu em Queluz, Monte Abraão, e a ideia de periferia e subúrbio está presente em tudo o que faz, pela via da marginalidade e pela forma encantada como aprecia pracetas. É mãe.

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