Aborrecimento, quase poesia



XVI:  Invocação do Pianista do Hotel Duomo

Depois, o ar fresco. Espécie de enlevo ao atravessar o estacionamento, malgrado o peso das sacolas, ganhar a calçada, iniciar a caminhada de quatro quarteirões, não mais, e todos nivelados.
Morosidade da fila. A vertigem que nos metem as velocíssimas mãos dos caixas. O costumeiro atrapalho à hora de ensacar, tanto mais humilhante quanto inevitável.
Em seguida, cruzar uma pequena passagem da noite, baixa ainda, justo o pedaço onde se acha o Hotel Duomo.
Há, no mundo, coisas feitas para a anonímia – o Hotel Duomo é certamente uma delas. A construção datará talvez de fins dos anos 1980. Ideada – como a grande maioria dos edifícios desta cidade – para não desvairar dos arredores, com vistas a uma perfeita integração. Sem capricho – sem propriamente um estilo –, trata-se antes de mais de uma excrescência do espírito do tempo, de um certo tempo. O fato de que não aparenta ter sido reformada em nenhum momento desde então é o que acaba lhe emprestando, passados quase vinte anos, certa autonomia com relação aos demais prédios da rua.
Eis a fachada, toda em vidro fumê. Quanto a isto, quanto a esta palavra, “fumê”, não podemos fazer nada. Ei-las, impunes, a palavra e a fachada do Hotel Duomo.
Separam-na do rés-do-chão algumas polegadas de mármore cinzento. Deste mesmo mármore de aspecto triste e algo encardido, os três degraus que dão para as portas do saguão, sempre abertas.
Um relance descobre no interior do saguão o inevitável conjunto de poltronas de estofado bege, semelhando couro, e mesinhas encimadas por vasos de vidro com copos-de-leite artificiais; o deslustrado balcão de recepção, atrás do qual as pequenas autoridades do hotel tratam de seus afazeres; funcionários de uniforme – mortos já, talvez –, alguns deles transportando de um extremo a outro da peça carrinhos de bagagem vazios.
Conexo ao saguão tem-se, no entanto, o piano bar do Hotel, diante do qual me detenho às vezes por alguns instantes ao voltar do supermercado.
Geralmente, nesta altura da noite as luzes do bar já estão acesas. Pode-se, da calçada, ter uma vista razoável do interior. Dentro, o governo incontestado de tons terrosos e amadeirados. Iluminação quente e suave, contrastando fortemente – irrealmente – com as luzes brancas do saguão. Prateleiras e prateleiras de garrafas de vidro contendo líquidos de cores as mais diversas, ainda que emudecidas, presas numa espécie de âmbar devido à iluminação pardacenta e ao fosco da vidraça.
Por vezes, vemos um barman. Esguio e uniformizado, como se esperaria, em perfeita consonância com o que vai de redor, enxagua copos com o olhar voltado talvez para o exterior da peça, para a vidraça, para as figuras que passam pela calçada. Este olhar ausentado, por vezes me fixo nele, deixo-me apreender, mas não é sempre. Não é sempre que o barman do piano bar do Hotel Duomo se encontra em seu lugar.
Já o pianista, o pianista do piano bar do Hotel Duomo, este nunca abandona o seu posto.
Há dois anos, desde que me mudei para cá, faço este trajeto do supermercado até o edifício onde vivo, e nunca vi seu piano desassistido. O canto que ocupa é bem próximo da vidraça. Uma espécie de nicho construído precisamente para isto, amoldado às dimensões do piano. Também o nicho é de vidro fosco. Através dele, é possível que o pianista enxergue os hóspedes que entram e saem, o arrastado vai-e-vem dos funcionários de quepe, os microacontecimentos nos lábios dos recepcionistas.
 Mas ele não vê o que se passa lá fora. Pelo menos não enquanto toca. A menos que tenha olhos na nuca. Está sempre de costas para a rua, para a calçada – de costas e um pouco de lado. Vejo sempre uma sugestão de rosto. Mas de seu olhar, acerca de seu olhar, tenho apenas conjecturas.
O que vejo ao passar pela fachada do Hotel Duomo são as costas de um homem já entrado em anos, levemente curvado sobre as teclas de um piano, as quais vai dedilhando sem nenhum esforço ou emoção aparente. Aquele âmbar estará então cheio de música, uma música que devo imaginar, que devo preencher, ao passar, por minha própria conta. Esta operação de preenchimento me é sempre agradável.
Como se o peso das sacolas do supermercado começasse a se fazer sentir, paro por alguns instantes, alongo um pouco o pescoço, sempre na tentativa de vê-lo melhor, captá-lo mais inteiro. Revejo então a calva ordeira, penteada, cercada por uns poucos e discretos fios brancos. As mãos, projetadas da mesma jaqueta acolchoada de tecido sintético, são enrugadas. A jaqueta é creme, é eterna. As mãos, penso que a música as enrugou. Não apenas a idade. Também a música.
A música, também ela anônima, barata, deliciosa. Escolho um repertório inteiramente composto de standards óbvios, “êxitos imorredouros”. Música arquitetada apenas para dizer – redizer, redundar – “âmbar”, “fumê”. Baixos copos de uísque, acrílico, bico de jaca. Pequenas cumbucas de madeira sobre o balcão cheias de amendoins e nozes murchas, trocados talvez de três em três dias. Uma poeira narcotizante sobre tudo.
Terá sido ela, a música, a maior responsável pelas manchas. Terá sido ela a responsável por estas veias saltadas. A música como alavanca, como um intricado instrumento de tortura dos idos medievais. A música como calço. A música que empurra as veias para bem junto da pele, fazendo, eventualmente, com que a ultrapassem.
Ninguém as vê. Ninguém as ouve. É esta a conclusão que se impõe, já que lá dentro nunca há nenhum cliente, nenhum hóspede. O próprio barman, como já disse, visibiliza-se apenas de raro em raro. É concebível que as pessoas no saguão ouçam qualquer coisa, recolham displicentemente uma linha melódica familiar, acalentadora. Mas trata-se sobretudo de uma música vizinha, parte da mobília, como o queria o Satie. Comovente, inútil, imparável. Ainda que ninguém o ouça, que ninguém o ouça com atenção, que ninguém o ouça com presença, seus dedos moídos de muzak são uma chuva de dias. Podem parar a qualquer momento, bem como um rochedo pode vir abaixo a qualquer momento, sem aviso. Mas podem durar indefinidamente. É mais provável que durem indefinidamente.
            Penso que continuarão indefinidamente.  
Mas penso também, às vezes, à medida que vou me aproximando da fachada do Hotel Duomo carregado de sacolas de supermercado, em como reagiria se um dia não o encontrasse lá dentro, em seu posto costumeiro, tocando o seu silêncio, seu número de silêncio, e sou tomado então por uma espécie de pânico, uma glaciação na espinha.
Entro no saguão, as sacolas prestes a rasgar, pergunto por ele. Ninguém compreende nada. Espalmo as mãos suadas sobre o balcão da recepção, tentando acordar o funcionário, tentando trazê-lo de volta à vida.
            Mas não é esta a fantasia mais habitual. Há uma outra, muito mais regular, que sempre me toma quando passo pela fachada do Hotel Duomo. Nesta fantasia, entro no saguão do hotel, mas meu porte é imperioso. Caminho com elegância até o balcão e entrego as sacolas de supermercado ao recepcionista, que me sorri com gentileza. Em seguida, adentro o piano bar. Avanço pelo âmbar onde ele acaba de terminar La Barca. Aproximo-me do piano, inclino-me suavemente, trocamos olhares de perfeito entendimento. Já fizemos isto antes. Muitas vezes, até. Devidamente hasteado, um pequeno e antiquado microfone espera o vocalista sobre um pequeno estrado. Acerco-me. Começa.
You must remember this.. a kiss is still a kiss.. a sigh is just a sigh.
E a meio da canção, enquanto o pianista improvisa, o barman caminha silenciosamente até o estrado que ocupo para me entregar um copo de uísque com gelo e soda.
Nesta fantasia, vê-se, ainda tenho voz. Não a dissipei. Consegui conservá-la de algum modo, apesar da passagem dos anos. Tenho uma voz vigorosa, direta, mas sobretudo possível. Grave, acariciante, vivida. Uma voz que não se encolhe diante das notas, que não procura atingi-las por debaixo, mas que se mede com elas, que caminha por todo o terreno da melodia sem exaurir-se. Tenho uma voz que se encadeia como que perfeitamente ao piano, um piano que se encadeia como que perfeitamente ao pianista, um pianista que se encadeia como que perfeitamente à ideia que faço do pianista do piano bar do Hotel Duomo.
Tomo o copo nas mãos. Sorrio para o barman, assentindo com a cabeça longamente, vagarosamente, no ritmo proposto, pois tudo – tudo – faz parte agora deste acordo tácito e maravilhoso entre os corpos e as coisas, entre música e ambiente, entre voz e canção.
As coisas, pela primeira vez, unificaram-se.  
Nesta fantasia, vê-se, ainda não me proibiram de beber.

             



   Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados.
            


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