Invisível




2.
(continuação)

— Você passa muitas horas do dia sem saber o que fazer, não é?
— Como posso querer dar conta das horas do dia se cada dia tem a idade de 24 horas e eu só tenho a idade de sete anos?
— Coloque sua mão aqui — disse o peixe, dando ordens para poder se esquivar de um argumento bem colocado.
Sofia colocou a mão dentro d’água, fazendo os flocos de ração se juntarem sobre sua pele. Eles pareciam loucos ali, deixando a luz passar, mas de repente ela se deu conta de que a luz passava e passava. A luz seguia até chegar no fundo do aquário. Sofia balançou a mão de leve e a luz estremeceu na água. Sofia tirou a mão do aquário e a fechou bem rápido, a luz não reagiu. Virou a palma para a luz. Foi ignorada. O peixe, de dentro do aquário, sussurrou: “in-vi-sí-vel”. Sofia continuou olhando para a própria mão, diante da luz. Diante ou dentro, porque a luz não se importava com a fronteira de sua mão. Sofia decidiu testar a outra mão, e testou de todas as formas possíveis: forma de garra, forma de coelho, forma de pedra, forma de tesoura. Todas diziam a mesma coisa: essas mãos estavam sem bordas nem recheio. A luz passava direto. Mostrou sua barriga à luz. Direto. Mostrou a boca aberta à luz. Direto. Ficou de ponta cabeça. Direto. Luz luz luz luz, sem desvios. Desistindo, Sofia caiu sentada na frente do aquário. Não sabia o que pensar.
— O que que eu faço agora? — Perguntou Sofia que também, de novo, não sabia o que fazer.
— O que você quer fazer agora que está invisível?
— Ficar sozinha, sem dó — disse emburrada.
— Sem dó nem sombra — disse o peixe.
— SEM SOMBRA? — Sofia riu. E olhou para o chão. De fato, sem sombra. As coisas estavam mais interessantes.
— Sem reflexo também — continuou o peixe.
— COMO OS VAMPIROS?
­— Agora que você está invisível, você tem que começar a fazer coisas com você. Pegue o primeiro livro que encontrar no quarto, ele será seu mapa. Coloque a mão dentro do aquário mais uma vez e pegue a sereia de plástico. Ela será sua guia. Arrume uma mochila com essas duas coisas e saia de casa para sempre, não precisa contar para ninguém. Órfã e livre, agora você é uma de nós.
Sofia fez como foi dito. Pegou o livro mais próximo e jogou na mochila. Era de capa dura e se chamava “O total da vida”, parecia ser um livro escrito por adultos. A sereia molhada foi junto. Prendeu o cabelo num rabo. Estava agora um pouco interessada pelo mundo.

3.
Sofia saiu do quarto sem ser vista, atravessou o corredor e a sala até a porta que dava para o quintal dos fundos. Saiu. Foi pela grama em direção ao esconderijo na árvore. Antes de entrar, olhou para um pássaro pousado num galho e disse PIU PIU PIU. O pássaro olhou de volta franzindo a testa e respondeu “que piu o quê”, mas a Sofia estava entusiasmada e já tinha escapado para dentro da árvore.
Estava imersa na escuridão, e seus olhos demoraram a se acostumar com a mudança. Tentou focar a visão nas paredes internas da árvore, mas elas pareciam se afastar, e o teto produzia sombras em si mesmo. Quanto mais a Sofia olhava, mais as coisas se mexiam. Saiu com as mãos à frente do corpo, caminhando devagar, até encostar na parede mais próxima.
Olhou bem em frente, à porção da árvore que conseguia sentir. Agora podia perceber o barro, as formigas minúsculas caminhando, a umidade condensada sob as mãos. Voltou a cabeça para cima e olhou para o teto. Tinha ficado imóvel. Deixou os braços caírem ao lado do corpo e observou. Conseguia fazer com que o ponto exatamente à frente de seus olhos ficasse parado. Mas com o canto da visão, via que as paredes continuavam inquietas. Suas rugas e manchas escuras pareciam personagens vivendo uma história à parte.

(to be continued)









Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.

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